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O Testamento de Pedro.

agosto 1, 2021

Segunda Carta de Pedro

CEBI Méier – Quinto encontro – 19/08/17

O Testamento de Pedro.

Leitura: 2 Pd 1,1-3,18.

Desenvolvimento do Conteúdo:

A segunda carta de Pedro nos apresenta um desafio especial na interpretação bíblica. Ela mostra que os textos bíblicos estão inseridos em um contexto muito humano de disputa. Trata-se de disputa por espaço e representatividade entre as comunidades cristãs do primeiro século, um fenômeno com certas semelhanças com o que encontramos entre as igrejas da atualidade. Mesmo aquelas que compartilham muitas coisas em comum, acabam por destacar o que as diferencia, seus símbolos e ensinos específicos.

O texto de 2 Pd polemiza com outros grupos cristãos. O autor da carta tende a apresentar-se como o guardião do que há de melhor na tradição petrina. Mas não se trata de um escrito fundamentalista, que tente reproduzir exatamente o que aconteceu no início da evangelização. Descobrimos que o autor tem uma forma muito própria de interpretar a história de Jesus, a memória de Pedro e seu mundo religioso. O autor não se isenta da responsabilidade de fazer opções, desenvolver temas, interpretar as tradições.

Usando recursos da retórica antiga e por vezes recursos cruéis, o texto propõe diálogo e comunicação entre as comunidades cristãs.

Pluralidade de comunidades no primeiro século

Há uma forma romântica de se abordar o cristianismo primitivo no que se refere à sua unidade e à possibilidade de diálogo e prática ecumênica entre as comunidades. O Novo testamento tem sido apresentado não só como exemplo de convivência ecumênica perfeita entre os cristãos do primeiro século, como também tem sido apresentado aos que promovem ecumenismo como o seu “mito fundante”. No novo testamento teríamos o reflexo da harmonia e unidade da igreja e da sua fé. O modelo bíblico dessa unidade estaria em Atos.

Leitura:  

    Atos 2, 42-45.

Diante de tal escrito, os cristãos do século XXI não teriam outra coisa a fazer senão buscar inspiração e modelos de ação – se bem que não sem uma grande dose de frustração.

Tudo isso cria um quadro idealizado do novo testamento, como se ele apresentasse de forma perfeita o modelo e o exemplo de vivência ecumênica, e esse modelo devesse ser aplicado à vida das comunidades religiosas na atualidade. Essa ideia romântica se baseia nas seguintes proposições:

  1. Unidade e diálogo no Novo Testamento são sinônimo de convivência harmoniosa entre as comunidades e se fundamentam em pontos comuns da fé apostólica, da prática libertadora tendo o pobre como centro e da vivência e das expressões da fé (liturgia e diaconia).
  2. A Igreja nasce una. Todas as divisões e diferenças de teologia e prática seriam decadentes em relação à unidade que reinava no princípio.

Conflito e interpretação ecumênica no Novo Testamento

  1. O Novo Testamento é um paradigma, não de uma solução ecumênica, mas de uma situação desafiadora para o ecumenismo. Enquanto solução ou proposta de solução. O texto bíblico apresenta sucessos e fracassos de vivência ecumênica.
  2. O surgimento de uma igreja cristã no final do primeiro século e começo do segundo é indício de um fracasso no diálogo dos seguidores de Jesus de Nazaré com a sua comunidade de referência: a sinagoga judaica. Este é o primeiro fracasso ecumênico documentado no Novo Testamento. Jesus era judeu e queria renovar Israel. Mas não foi esse o desenvolvimento que encontramos. A separação entre as igrejas cristã e judaica não representa o objetivo da missão de Jesus de Nazaré.
  3. A própria existência de um corpo limitado de escritos religiosos no NT já é sinônimo de certo fracasso de convivência ecumênica. Os 27 escritos que temos no Novo Testamento constituem uma seleção de textos considerados autorizados pela igreja antiga. Mas muitos outros foram deixados de fora como desautorizados, com valor religioso menor. Constatamos que a expressão religiosa de vários grupos por trás dos escritos chamados “apócrifos” não era considerada tão importante.
  4. No novo testamento não encontramos sempre consenso nas expressões acerca do significado Cristo, da vida comunitária, dos temas e posturas políticas. Existem temas comuns, interesses comuns e até tendências comuns, mas a produção está muito voltada para as necessidades de cada comunidade no seu contexto específico.
  5. Além de não termos consenso na teologia e na prática, encontramos reflexões e práticas divergentes e, em alguns casos, concorrentes. Essa divergência também se dá entre as diversas comunidades cristãs e, frente ao judaísmo, no qual o cristianismo ainda estava inserido.
  6. A concorrência ou divergência entre diversas comunidades cristãs, entre elas mesmas ou com o judaísmo, se articulava em disputa por um espaço maior no campo religioso. É na missão, na luta por espaço de atuação, que emergem os vários temas de conflito entre os diversos grupos.

Eis alguns desses conflitos:

  • Conflitos políticos (comunidades anti-romanas x comunidades mais assimiladas e adaptadas);
  • Conflitos econômicos (interesses de cristãos mais bem situados na sociedade x interesses de escravos ou camponeses);
  • Interesses geopolíticos (comunidades buscando liderança como a de Jerusalém x cristãos de Antioquia narrados em Atos 15 e em Gálatas 2);
  • Contextos culturais (cristianismo dos gentios x cristianismo de comunidades exclusivamente judaicas);
  • Conflitos de gênero (carisma feminino x cargos masculinos nas comunidades paulinas; emancipação da mulher na casa x submissão da mulher ao pater famílias;
  • Conflito teológico (ênfase na cristologia “alta” x cristologia “baixa”).

Resumindo: o Novo Testamento nos oferece modelos e contra-modelos de relacionamento entre comunidades, e eles tem de ser analisados em seus contextos específicos. Isto significa que o pluralismo existente desde o início é um sinal positivo de que a mensagem de Jesus de Nazaré e seus primeiros seguidores foi adaptada criativamente pelas diferentes comunidades. Os textos bíblicos são marcados pelos conflitos da vida de suas comunidades. Nossa leitura dos testos bíblicos deve levar em conta a dinâmica da vida.

Não encontramos uma unidade como característica geral do Novo Testamento e de suas comunidades, mas podemos encontrar projetos de convivência ecumênica entre algumas comunidades:

  • A coleta das comunidades paulinas para os pobres de Jerusalém;
  • Aceitação de samaritanos e batistas nas comunidades joaninas;
  • Avaliação positiva de João Batista e de seus seguidores, apesar da concorrência entre estes e o movimento de Jesus;
  • Inclusão de estrangeiros em 1 Pd;
  • Acordo de tolerância entre cristãos, judeus e cristãos gentios em Atos 15;
  • Mediação de Tiago entre cristãos paulinos e cristãos que estão sob a Lei judaica;
  • Acolhimento dos escritos de Paulo em 2 Pd.

Cartas polêmicas e seus instrumentos retóricos

Uma das estratégias mais usadas pelas comunidades para conquistar espaço no cristianismo primitivo é o emprego da retórica antiga, isto é, emprego de formas literárias que buscam convencer os leitores, motivá-los a aderir a uma ideia e rejeitar outra.

Esta é uma das especialidades do autor de 2Pd. Esses instrumentos de retórica incluem:

  • Uso da pseudonímia (escrever uma obra em nome de uma autoridade do passado). Este é o caso também de alguns escritos atribuídos a Paulo, como por exemplo as cartas pastorais a Tito e 1 e 2 Timóteo.
  • Acusações contra os concorrentes feitas de forma pesada, mas muito estilizada. Exemplo: acusações de avidez por dinheiro, levantar suspeitas quanto à integridade moral, ou iniciar uma descrição dos adversários dizendo que eles aparecem no final dos tempos, ou seja, quando os bons costumes desaparecem da face da terra;
  • Definir sua própria postura como doutrina sã, enquanto o ensino dos demais é caracterizado como falso. Esse dualismo é encontrado em 2 Pd, Tito e 1 e 2 Timóteo.

Metodologicamente, quando deparamos com certas expressões desse tipo, devemos ter certa precaução de não caracterizar os grupos acusados exatamente com os adjetivos e características atribuídas pelo autor em questão.

O mais importante é reconstruir, na medida do possível, o contexto de cada um e os seus interesses. Devemos perceber o que é central em sua fé e dar menos importância ao que dizem sobre os outros.